sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O SALÃO



            Como todos os bairros de São Paulo, o Capão possui um centro comercial. Hoje (2012) ele é um importante polo para os bairros adjacentes, porém na minha infância, o movimento era menor, não havia lojas de departamentos ou grandes lojas de calçados, o que existia era um modesto comércio local dominado por imigrantes.

As lojas de móveis eram dos libaneses, mas nossos pais os chamavam de “turcos”, não sei o porquê da confusão, creio que o motivo era religioso, como eram mulçumanos, por dedução eram turcos. Havia também as lojas de roupas, miudezas e quitandas que eram de predominância japonesa, enquanto as padarias eram de portugueses (mesmo se o dono da padaria não tivesse ligação nenhuma com as terras lusitanas).

Os demais moradores, como eu, eram das “Terras do Norte” (nordestinos). A colônia nordestina era e, ainda é, a grande força produtiva de nosso bairro. Os sotaques eram inconfundíveis, meus pais, alagoanos, conseguiam precisar o estado de origem de um nordestino pela entonação de voz. Havia varias formas de excluir um indivíduo de acordo com sua origem: os baianos eram tidos por trabalhadores, os cearenses eram os mais impulsivos, os pernambucanos de mulheres fortes e homens enrolados, nós, os alagoanos os mais excludentes. Meu tio Joel, um dos pioneiros do bairro, dizia com certo orgulho, que não havia “vadiagem” entre os alagoanos.

Além de pertencer a colônia nordestina, meus familiares e eu, pertencíamos a outra divisão social em nosso bairro, éramos todos evangélicos pentecostais. Esta divisão religiosa tem grande importância na dinâmica do bairro, pois somos um dos bairros com maior concentração de adventista (denominação cristão de origem americana) em nosso Estado.

Ser pentecostal nas décadas de 80 e meados de 90 do século XX, nas periferias das grandes cidades brasileiras, causava um estigma. As comunidades eram extremamente fechadas, mesmo que dadas aos convencimentos de outros para aderirem aos seus costumes. Não possuíamos aparelhos televisivos, não praticávamos esportes e após o batismo (que ocorria para os jovens entre os 12 e 15 anos e paras os novos convertidos após admissão na comunidade), os homens não podiam usar roupas esportivas (shorts, camisetas regatas e afins), não podiam discutir futebol ou ser dado a vícios, por sua vez as mulheres não cortavam os cabelos nem usavam trajes masculinos (calças) nem nenhum tipo de adorno ou joias. Quase toda a comunidade era formada por pessoas pobres, de baixa escolaridade. Os de maiores destaques eram metalúrgicos, que possuíam nível técnico e uma condição econômica diferenciada.

Era fácil detectar um “crente” (termo usado pejorativamente para nos designar), nós possuíamos costumes e hábitos diferentes, nossos assuntos eram diferentes, nossas roupas eram diferentes e isto, causava um misto de orgulho e raiva: raiva por não sermos como os outros garotos e orgulho exatamente por isto também.

Nossa comunidade se reunia na Igreja Assembleia de Deus do Capão Redondo, cada culto (como é chamado as reuniões nas igrejas) era uma festa, as mulheres bem vestida com roupas feitas, (especialmente para estas ocasiões) por costureiras da própria comunidade, usar roupa comprada pronta não era bem visto. Os homens de paletó e gravata e sapatos bem engraxados. Como muitas ruas do bairro não era asfaltada havia uma lâmina de ferro, sem corte na porta da igreja, onde limpávamos os sapatos repletos de barro.

No centro do bairro, próximo ao supermercado Ki-Preço, havia um endereço especial para mim e para a comunidade evangélica. Um lugar de debate e discussão, um salão de cabelereiro, ou melhor, uma barbearia, “Salão Alagoas”. Com uma decoração sóbria, cadeiras de ferro, revestidas de madeira e estofados marrom, com grandes espelhos arredondados, toldos de metal, onde se conversava apenas sobre teologia e política. O barbeiro era conhecido como “Irmão Laerço”, para mim: era o tio Laerço.

Homem de personalidade forte e grande conhecimento, divertido e ao mesmo tempo solene, passava horas a falar sobre bíblia e política. Era ferrenho defensor do prefeito Jânio Quadros (posição que o levou a grandes contendas), em uma gaveta abaixo do balcão, onde deixava os materiais de oficio, existia vários botons em forma de vassoura, símbolo de Jânio.

Durante os finais de semana passava os dias lá, sábado era o dia de maior movimento no salão, vários pastores e irmãos de nossa comunidade apareciam, como o trabalho era muito, meu tio me dava “um dinheiro” todas as vezes que varria o salão, e assim o dia passava. Tinha duplo beneficio: ganhava um troco, para a bala, (que era comprada na venda do “irmão” Filadélfio) e ouvia conversa de adulto.

Aos domingos íamos à igreja duas vezes: para a Escola Dominical, era o melhor momento da semana para as crianças, podíamos falar e perguntar o que quiséssemos, eu aproveitava para reproduzir o que havia escutado no dia anterior no salão, e como brinde ganhava elogios, a noite havia o culto principal com o coral e a banda, era lindo ouvir e ver os solos, depois tinha o momento onde o pastor falava e seus erros e vícios de linguagens, típicos daqueles homens de curta cultura e grande boa vontade, eram o que iria nos divertir no fim da noite, com imitações fantásticas feitas pelos meus primos mais velhos.

Tudo acabava as dez e meia de domingo, com o fim do bolo de farofa feito pela minha tia Eliane, tio Laerço nos levava até a porta do fusca velho de meu pai, e dizia a melhor frase da minha infância.

 - “Artegézio (meu pai), manda o menino semana que vem”. Papai dizia que eu iria incomodar, ele respondia: - “Não, ele é um bom menino.”

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Minha rua


Minha rua


 

            Minha rua tem nome de herói de guerra, um herói que não conhecemos, fora ser o nome da rua que moro há 31 anos, não tem significado nenhum seu nome. Sebastião Francisco de Oliveira, nome que falei tantas vezes em fichas e documentos. A única referência a ele que tenho, era uma placa azul no começo da rua, que dizia, “Herói da Guerra de 1932”, se isto é real não sei, mesmo sendo de formação historiador, nunca encontrei seu nome em arquivo nenhum.

            Mas saber que ele era herói de guerra povoou minha mente infantil por anos, pensava: como ele era? Como teria sido a guerra? Será que ele era oficial? O colégio principal de meu bairro chamava-se Cel. Mario Rangel, fazia ligações infantis que todos os nomes das ruas próximas fossem de soldados sobre a ordem deste coronel, com o tempo descobri que não, (mas à história do colégio fica para outro texto). Entretanto aqueles heróis eram tudo para mim. Eles participavam das minhas aventuras, eu era um soldado, o Francisco (o da rua) era outro, e guerreávamos contra um monte de inimigos.

            Depois descobri que a tal guerra era a Revolução Constitucionalista, de 1932, este fato aumentou meu desejo separatista. Ficava imaginando, “se São Paulo fosse um país, nossa cidade seria um estado e o Capão Redondo seria uma cidade, então poderia ser o prefeito dela”, isto aguçou minhas pretensões políticas por anos.

             O mais gostoso da minha rua era que, nós nos conhecíamos. Havia duas quadras, na primeira morava um tio meu (Tio Joel), um dos primeiros  moradores, na segunda quadra estava minha casa. Na esquina, com a Rua João Joaquim Bonh, tinha o bar do português, onde eu comprava pão pela manhã. Lembro-me que tinha uns quatro para cinco anos quando fui buscar pão sozinho pela primeira vez. Meu pai ficou conversando em frente da casa com os vizinhos e eu fui buscar cinco pães, eu era grande agora, havia feito à passagem.

            Ao lado do bar ficava a maior casa da rua a do Seu Julio e da Dona Olivia, eles tinham uma filha, mas ela nunca brincava na rua. Do lado oposto morava, Dona Dioclecia e seu marido, do lado dela Dona Antônia, eles eram os dois casais mais idosos de nossa rua, em frente a casa deles não podia gritar.

            Ao lado da Dona Olivia, morava o Roberto, meu grande amigo, com seus pais, Dona Ângela e Seu Humberto, eles tinham um Opala marrom, o carro mais bacana da rua, era lindo vê-lo sendo lavado fim de semana. Na casa acima o Fabio, filho da Dona Renata, em seguida a casa do Seu Nelson, o artista da rua, os filhos dele foram e são meus amigos até hoje. O mais velho era o Fi (assim que chamávamos), depois o Alexandre - do qual tenho boas histórias para contar dele - a Cristiane e o Henrique, que eram os mais novos, com quem brincava horas e horas na rua.

            Mais acima havia a casa do seu Benevides, depois a da vô do Tiago, a da Dona Miralva (onde eu assistia TV) e a última, casa do lado esquerdo, era de um senhor que possuía um guincho.

            Eu morava do outro lado da rua. Na esquina, com a Rua Manuel Peres, morava o Senhor José da Dona Domingas, foi ele que me levou para assistir, na televisão deles, o enterro do Tancredo Neves, foi meu primeiro evento político. Ele havia sido militar, e passava horas contando como era bom o tempo que passara nas forças armadas, eu achava a filha dele linda.

            Nossa casa era a próxima, número 412.  Tinha um jardim na frente e outro atrás, minha mãe cultivava rosas e mato de chá (era assim que falávamos), havia um pé de ameixa, um de chuchu. Minha casa era pequena, tinha uma sala, cozinha, lavanderia e um quarto. A lavanderia tinha uma porta branca, que eu abarrotei de adesivos de políticos. Todo dia ao chegar, meu pai, cantava uma música. Minha mãe perguntava quem era, e ele prontamente respondia: “É o frio”. E lá vinha a musiquinha de uma loja de departamento da época.      

            Nossa rua tinha outras casas, abaixo da minha, havia uma granja, depois, era a casa da Dona Rita, a casa do Rodrigo da Dona Naná, a do Mauricio, a da Dona Gertrudes e Seu Wilson, e voltávamos à Dona Antônia.

            Foi ao lado destas pessoas que cresci, foi com elas que formei meu caráter, que aprendi lições de vida. Nesta pequena rua de periferia, com um pouco mais de vinte famílias, que fui criado. Brincando na rua de terra, jogando bola, esfolando os pés, não havia luxo, mais aquela realidade era muito rica para todos nós.

            Foi assim, que um herói de guerra desconhecido, virou uma das maiores referencias da minha vida. 

               

Eu


Sou morador do Capão Redondo, e isto por si só é uma definição. Não sei o que é viver em outro lugar, conviver com outras pessoas. Os problemas deste bairro confundem-se com os meus, os lugares, as ruelas, as vielas, os escadões, são partes integrantes do meu ser.

            No ano de 1981, ano em que nasci, meu pai já morava aqui a pelo menos uns vinte anos. O terreno onde morávamos foi por ele adquirido em 1966, com dinheiro que conseguiu vendendo biscoito de polvilho no Parque do Ibirapuera, mas meus avós já moravam aqui desde quando chegaram do Nordeste. É por isto que afirmo que não conheço outra localidade, só conheço o Capão.

            Até a década de 1990, quase não havia ruas asfaltadas, no nosso bairro, eram todas de terra. Perto da minha casa, apenas a rua, Alfredo Ometecídio tinha asfalto, e ir brincar lá era um passeio de fim de semana. Todo sábado minha mãe permitia que brincássemos uma hora de bicicleta no “Asfalto”, este era o ponto máximo de nossa “vida” naqueles tempos.

            E foi neste misto de aventura e desventura que minha infância teve curso no Capão. E são estes momentos que pretendo descrever neste blog, sem pretensões elevadas, mais com um olhar sobre minhas memorias de infância, de um bairro que não era maravilhoso, que possuía e, ainda possui, muitas mazelas sociais, mas que deu abrigo para várias crianças de minha geração. Crescemos cauterizados, sem ler esta realidade cruel que nos circundavam, e que fizeram daqueles os melhores momentos de minha história.